Uma robusta elefante fêmea adentra o quarto. De forma majestosa e descomplicada, posta-se no ambiente, ocupando quase sua totalidade. Na esguia tromba, o animal segura com delicadeza uma safira reluzente do tamanho de uma maçã, que irradia com tanta potência sua cor que torna azul tudo que a rodeia. Composta de pinceladas brancas e contornada por um fino aro roxo, a pedra preciosa endossa a teoria do alemão Josef Albers (1888-1976), de que nossa percepção da cor depende inteiramente do contexto a que somos expostos. A cena descrita acima ocorreu durante um sonho do artista brasiliense Renato Rios nos meses que antecederam a chegada de sua filha, Aurora. O enredo fantástico transformou-se em tela e agora nomeia também sua primeira individual como artista representado pela Galeria Estação.
Na parede oposta, localizada também no mezanino do espaço expositivo, está Grande Espirito. A pintura de grandes dimensões, feita no mesmo azul lisérgico que reforça a destreza de Rios no estudo da cor, atrai o espectador em sua direção, como se pudéssemos penetrar no portal mágico que se abre ao encará-la. Seu título nos indica um dos caminhos possíveis para desvendá-lo. O Grande Espirito, também conhecido como Wakan Tanka entre muitas culturas originárias das Américas, fala sobre o divino, o grande mistério da vida e para além dela. O Grande Espírito tem sido, muitas vezes, conceitualizado com uma divindade que nos conecta à espiritualidade, manifestando-se como o som do universo que tudo permeia, ressoando na pintura do artista por meio de finos círculos cromáticos que parecem vibrar uma espécie de melodia.
Entre as duas potentes pinturas desdobram-se de cada lado 36 telas de pequenos formatos. Cada uma delas repercute como uma nota musical e, juntas, elas compõem uma sinfonia de cores que se desenrola de forma contínua, formando caminhos pelas laterais do espaço. Ao percorrê-las com nossos olhos, é como se nos déssemos conta de que tais telas nascem umas das outras em uma cadência poética e interconectada. Há um caráter instalativo na produção de Rios que se forma como um ouroboros, em que cada pintura nasce da outra, dando continuidade a um infinito círculo virtuoso.
A expografia proposta pelo artista para os dois espaços da Galeria Estação enfatiza suas relações de experiência com a pintura. Enquanto a cor e sua abstração são protagonistas no mezanino, sugerindo uma vivência celestial ao espectador, no mundo terreno do andar térreo, Rios propõe um estudo cromático voltado aos universos vegetal, mineral e animal, trazendo-nos de volta às raízes. Dessa forma, vemos a cor como sujeito em diferentes formatos, como esgueirando-se por uma fresta ou frincha pela qual é possível acessar um lugar novo, um portal de contato entre sensações que circundam o céu e a terra. É por essa mesma passagem que também retornamos dessa experiência, em um movimento contínuo de ingresso e egresso, como a sístole e a diástole de um coração. Assim, as pinturas de Rios são, cada uma delas, passagens, portais de chegada e partida, de e para pontos de infinitas possibilidades que a luz, a paisagem e os seres animados e inanimados que nascem de suas tintas nos proporcionam.
A pintura para Rios é o lugar onde o artista se realiza enquanto sujeito. Tempo e espaço no qual congrega faculdades nos campos analíticos e nos diferentes fenômenos da percepção. A prática o leva a um certo estado de espírito que promove seu caminho de autoaprimoramento. Também é por meio dela que consegue convergir distintos mundos, reais e imaginários. Dessa forma, ela reforça seu papel agregador, que possibilita a ele celebrar e também sintetizar vivências. É por meio dessa mídia que conecta-se com seu eu mais íntimo, um campo espiritual criativo do que acredita ser o essencial à vida.
Em seu pensamento e também em sua produção, Rios sugere a união entre natureza e cultura, dois conceitos que costumamos ter como díspares, quase diametralmente opostos. A modernidade pautou-se por anos na dicotomia dessa ideia, como se a partir da construção de algo que nos alimenta intelectualmente nos distanciássemos de nossa origem, a terra. Segundo Merleau-Ponty (1908-1961), “no homem, tudo é natural e tudo é fabricado”. Somos uma junção do natural com o cultural, e isso talvez seja a singularidade, e, por que não, a potência e o assombro do Homo sapiens. É na afluência desses dois territórios que brotam entre as camadas de cores sobrepostas cuidadosamente homens que aparecem como pontes entre esses dois universos que nos compõem. Seja em repouso, com olhar firme no horizonte, ou em ação, remando pelas águas, o humano tal qual retratado por Rios não nos leva ao sentimento de confronto, mas sim à harmonia da coexistência física e mental entre natural e cultural, como defende Merleau-Ponty.
A consonância de universos ganha força em tais figuras, que sugerem um encontro de distintas etnias, referências e ancestralidades. As escolhas do artista vão ao encontro do pensamento de Antônio Bispo dos Santos (1959-2023), que em sua visão cosmológica diz que um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outros, ao contrário. Ele passa a ser ele mesmo e muitos rios, fortalecendo-se. “Quando a gente se confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. A confluência é uma força que aumenta, que amplia.” Tal confluência na produção de Rios une visualidades, conecta os mundos figurativo e abstrato. E, como afirma Bispo, essa comunhão não faz com que a obra perca a potência, muito pelo contrário, ela soma-se, ganha contornos, relampejos, nuances, sabores distintos que só aqueles que estudam profundamente a alquimia das tintas conseguem alcançar. Entre as milhares de possibilidades da terra, nasce uma centena de aromas possíveis, que transitam nesse espaço de luz e sombra. Primeiramente, reconhecemos a força e a beleza dos tons específicos concebidos por Rios. É necessário tempo para alcançarmos o grau de miscigenação proposto pelo artista e que o leva a chegar a tais efeitos. Sua pintura nos conduz ao encantamento, eterniza a fração de segundo do movimento do pincel. Como disse Guimarães Rosa por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, “O mundo é mágico: as pessoas não morrem, ficam encantadas.” E assim são as figuras que ocupam as telas do artista.
Nas camadas figurativas também encontramos os animais, constantes em sua produção artística. Notamos a caminhada da tropa de cavalos, o movimento de suas crinas, a forma com que curvam seus cascos, acercam-se uns dos outros. Suas pinceladas nos recebem nessa paisagem criando movimento, fazendo surgir em nós o som das passadas e de tudo aquilo que não vemos, mas que percebemos existir em tal cena. Na mesma toada, cruza o lobo-guará, personagem frequente nas paisagens do cerrado, bioma tão próximo à vivência pessoal do artista. Outros seres também perpassam as telas do pintor, deixando sua presença flertar entre o real e o imaginário e colocando a pintura de Rios mais uma vez em perspectiva. Ali também encontramos outras referências de seu ambiente pessoal, como a artemísia, planta aromática e arbustiva com características medicinais. Do céu, caem as estrelas de múltiplas cores, que sistematicamente aparecem em suas obras, relembrando-nos da conexão entre divino e terreno, já que somos todos filhos da terra, do fogo, da água e do ar.